Doações

reportagem

A caridade como meio de transformação social
09/01/2012 | 00:05 | Angélica Favretto, especial para a Gazeta do Povo

Irmã Anete Giordani desenvolve projetos para melhorar a vida de uma comunidade de Curitiba assolada pela falta de segurança

Eis a sinopse: uma freira é chamada para trabalhar em um bairro violento e que sofre com o descaso público. É necessário reorganizar uma das escolas locais, fazer com que adolescentes e jovens tenham uma perspectiva de futuro e, através de ações práticas, colocar tudo nos eixos. Mas essa religiosa não é como as outras. O hábito não a intimida a jogar bola com os meninos na praça ou a colocar a mão na massa para erguer paredes e limpar terrenos.

Lembrou da personagem de Whoopy Goldberg em Mudança de Hábito, mais precisamente na sequência do filme, onde com a música ela muda a história de jovens do bairro? Pois bem, o trecho acima não é a história da Irmã Mary Clarence, mas sim do início do trabalho da Irmã Anete Giordani, 46 anos, na Vila Sabará, na Cidade Industrial de Curitiba.

Assim como a personagem do filme, a Irmã Anete revolucionou o local onde foi trabalhar. Nascida em Bento Gonçalves (RS), ela é oriunda de uma família católica bastante religiosa. Sempre teve em casa o bom testemunho dos pais. Um dia, aos 6 anos, uma freira a visitou em casa e tirou dos bolsos várias balas coloridas. Os olhos da pequena Anete brilharam e ela encasquetou que esse devia ser o papel das irmãs: entregar balas e trazer alegria.

A menina cresceu. Aos 10 anos ganhou um violão e, vendo Teixerinha pela televisão, aprendeu a tocar sozinha. Na adolescência praticava vários esportes, dançava nos centros de tradição gaúcha, se formou professora e técnica em contabilidade. Mas a vocação lhe bateu à porta mais uma vez.
O mês de agosto para a Igreja Católica é o mês vocacional. Na época, irmãs da congregação Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus passaram nas escolas mostrando o trabalho das freiras. Os olhos da jovem Anete brilharam e, dessa vez, decidiu conhecer a vida religiosa mais a fundo. Passou por dois anos de noviciado e aos 20 fez seus primeiros votos. O trabalho com a juventude sempre foi o que mais gostou, porque para ela é preciso incentivar esses meninos e meninas a ter um projeto de vida.

Trajetória

Sempre ativa, no início da década de 1990 foi para a Itália estudar Ciências Religiosas e participou do processo de beatificação da Madre Clelia Merloni, fundadora das Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus, transcrevendo diários e documentos. Quando retornou ao Brasil, em 1994, colaborou por algum tempo com o Centro Social Divina Misericórdia na Vila Sabará, mas só em 1999, quando a antiga gestora ficou doente, é que ela foi chamada para assumir o trabalho. São 25 anos dedicados a Deus, data comemorada sempre no dia 21 de janeiro.

Moradores estavam muito acomodados

Quando chegou ao Sabará, Irmã Anete percebeu que a igreja só dava o peixe aos moradores, mas não os ensinava a pescar. Todos os dias pessoas iam até o Centro de Ação Social, que ficava no bairro Santa Helena, e de lá saiam com carrinhos de mão cheios de comida e roupas. Anete, que agora era estudante de Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), achou naquela situação um problema. Tudo era muito cômodo para ambas as partes. Não era possível uma pobreza tão grande que nem comida aquelas pessoas conseguiam comprar.

Quando alguém pede comida, segunda ela, é porque já não tem mais para onde correr e não era isso que ela via no Sabará. Ali tinha gente forte e bem disposta. Passou então a trocar a comida pela presença dos moradores em um círculo de conversas. “Para quem faz a caridade dessa forma pode se tornar um escravo do ‘eu’. Algo como: ah, todos precisam de mim, eu sou melhor. Para quem só recebe, se torna escravo do próprio comodismo”, explica. Ela começou a mostrar aos vizinhos que a igreja estava ali para auxiliar e não para suprir todas as necessidades deles.

Creche

Em 2000 o Centro assumiu a creche comunitária do Sabará. Além dela, até hoje, só existe mais uma creche da prefeitura. O prédio precisava de reformas urgentes, as 100 crianças mal tinham onde se sentar e a verba repassada pela Secretaria da Criança, responsável pela educação infantil na época, era de R$ 30 por aluno. “Um absurdo”, pensou ela.

Então combinou com as famílias que elas contribuiriam com mais R$ 10. Ouviu reclamações e contornou a situação mostrando que ela estava trazendo qualidade educacional e de vida para as crianças. Venceu mais essa. Com Deus em cada passo que dava, ela conseguiu amigos voluntários para reformar a creche. As roupas que antes eram doadas passaram a ser vendidas a 50 centavos, o Clube de Trocas foi criado e a rotina da vila foi mudando. Incomodada com o terreno baldio ao lado da creche, lutou até conseguir o espaço junto à prefeitura. Ampliou a escolinha. Hoje, no local, são atendidas cerca de 200 crianças.

Vocação
Especialista em sonhos

Desde as 4h30, quando se levanta, Irmã Anete gira em função dos projetos que escolheu fazer. No início ela não tinha preparação alguma, mas, ao longo de 12 anos no Sabará, tornou-se especialista em conseguir doações, em formar voluntários e fazer amigos. Vez ou outra se imagina com dois cérebros: um que conversa com você e outro que está a todo o vapor criando projetos.

Há dois anos tem auxiliado na elaboração de projetos para indígenas da região de Guarapuava. Neste ano, diz que vai separar um tempo na agenda apertada para os idosos do Sabará. A casa onde ficava a primeira sede do Centro de Assistência da Divina Misericórdia – aquele no Santa Helena, onde no começo todos buscavam alimentos – será transformada em um espaço para integração da terceira idade. Eles terão aulas de informática, pequenas oficinas e lugar para jogar conversa fora. E para quem não pode ir até lá, ela já avisa que fará visitas em casa. Não há como resistir.

Tornou-se especialista em sonhos e perita em tirá-los do papel. O cansaço não lhe tira o sorriso do rosto. Parece ser feita de um material raro nesses dias de relacionamentos a distância e imediatismos: amor ao próximo. É professora, aluna, mãe, filha, conselheira e administradora. A fé é motivadora do seu trabalho, não fosse isso, pensaria estar louca. Vê na criança e no adolescente um filho amado de Deus. Para ela não importa como chegaram até ali, mas como sairão.
Mil e uma ideias para ajudar a quem precisa

Certa vez, Irmã Anete deparou-se com uma briga de gangues em frente à casa onde morava. “E não era jovem não, era piá pequeno com arma na mão” recorda-se. Aquilo ficou no pensamento até o dia em que a mãe de uma aluna da creche veio lhe pedir para ir até o velório do filho de 15 anos, morto por engano na porta de casa. Quando chegou e viu no caixão aquele baita menino, forte e que tinha a vida toda pela frente, ouviu uma voz dizer: “De que adianta vir aqui depois do acontecido?” Voltou para casa e a fábrica de ideias começou a trabalhar.

Autodidata, foi aprendendo a criar projetos e levou um deles à Secretaria de Esporte e Lazer. Não era comum que pedidos fossem atendidos prontamente. Mas a irmã sempre tem Deus como fator extra e, duas semanas depois, conseguiu bolas e apitos. Tornou-se a primeira treinadora da escolinha de futebol da praça perto de casa. Uniu ali os meninos das duas gangues. Criou um território de paz. Eram 90 em 2002 e agora são 270 jovens jogadores. A irmã passou o posto de treinadora para gente da área, mas supervisiona de perto os meninos.

Na sede da entidade que fica na Rua São Romualdo, ao mesmo tempo, começou a trabalhar com os contraturnos escolares. Ali também existe a panificadora da comunidade que neste ano, em parceria com a Fundação de Ação Social (FAS), oferecerá cursos de panificação e preparação de alimentos. Mas, em meados de 2003, este espaço começou a ficar pequeno diante da quantidade de crianças e jovens que chegavam.

Ajuda divina

Foi então que em um retiro espiritual a situação começou a mudar. Em um momento de oração lhe veio à cabeça a imagem do pai de alunos de uma das escolas em que trabalhou: Jorge Favretto. Quando procurou por ele, descobriu que o homem era dono de muitas terras na vila. Ao ligar e se apresentar a ele, soube que Jorge também estava à sua procura. Ele soube do trabalho da irmã no Sabará e queria doar um terreno. Coincidência? Para ela tudo isso é Deus. Mais tarde, ganhou a planta baixa do prédio, que fica na Rua Maria Rosa do Contestado. Sempre com doações, conseguiu erguer as paredes, pintar e mobiliar.

Ficha técnica
Conheça um pouco da infraestrutura do Bolsão Sabará:

- 12.154 moradores, segundo dados do posto de saúde;
- 1 armazém da família;
- 1 escola municipal (Mansur Guerios).
- 3 contraturnos;
- 1 Centro Municipal de Educação Infantil Conjunto Itacolomi;
- 1 Centro de Educação Infantil Divina Misericórdia;
- 1 unidade de saúde;
- 2 áreas de lazer comuns: Bosque São Nicolau e Praça Bela Vista do Passaúna (a praça pertence ao bairro São Miguel, mas é usado por todos os moradores);
- 2 ONGs: O Centro Integrado Divina Misericórdia e a ONG Anjos, que trabalha na ressocialização de ex-presidiários;
- Principal ponto de comércio: Rua Herecê Fernandes.

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